segunda-feira, 31 de março de 2014

A Jovem Caiçara e a Ditadura

Os impactos do golpe de 64 na vida de uma cabofriense

Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
em Cabo Frio.
 - Wolney Teixeira, 21/04/1964.
Início dos anos 60 em Cabo Frio, cidadezinha da Região dos Lagos do Rio de Janeiro, prevalecia a típica paz provinciana. Entre a pesca, o artesanato e as pessoas conhecidas encontradas a cada esquina, uma jovem caiçara vivia tranquilamente pelas ruas. Seu nome era Rozeli Fernandes, ou apenas Roze, como prefere ser chamada. Moradora do Portinho, a jovem ia a pé para a escola. Hoje, mãe, avó, professora e pesquisadora de história, Dona Roze relembra o que ocorreu em sua vida naqueles anos.


Quando o golpe militar se estabeleceu no Brasil, a então jovem estudante percebeu algo diferente em Cabo Frio. Seu caminho costumeiro para a escola teve de ser alterado, pois em frente da lagoa havia comunistas reunidos, e como ela mesma diz com um sorriso brincalhão, “comunistas comiam criancinha”. Em entrevista exclusiva para o UVA PASSA, Roze conta um pouco da história que viveu.

- Eu morava em Cabo Frio e teve o golpe 64, teve aquela caminhada com a família, caminhada pela paz, e eu estava lá com a bandeirinha, levada pela professora, pela igreja. Tinha 14 anos, não tinha noção nenhuma do que estava fazendo ali, me levaram. – diz Dona Roze.
Em Cabo Frio tudo parecia normal, apesar de um sentimento estranho no ar. Algo mudara, porém não se sabia ao certo o que.
- Não tínhamos consciência do que estava acontecendo. Por exemplo, a história ela só é vista depois que passa muito tempo, você olha e só depois que você vê um contexto geral das coisas. – explica ela.
Aos 21 anos Rozeli se casou e no ano de 1972 a jovem interiorana foi morar na capital do Rio de Janeiro.
- Meu sogro trabalhava nos Correios lá na 1º de Março. Tudo aconteceu ali, ele viveu todo aquele movimento da revolução. Tudo se concentrou no Rio e em São Paulo. Hoje se acontecer qualquer movimento, como aquele “o gigante acordou”, foi em tempo real em todos os lugares, naquela época não existia isso.  Existia uma censura, e essa censura era geral e restrita. – Compara a pesquisadora.
Roze foi estudar na tijuca, em uma escola de moças para formação de professoras. Ao lado tinha o instituto Lafayette, onde tinha a faculdade de filosofia. Os alunos notavam que do outro lado da rua, sempre tinha um homem em pé observando.
- Ele sempre ficava ali. Eu chegava sete e meia na escola e ele estava lá, nessa esquina tinha uma padaria, ele almoçava, lanchava, fazia tudo por ali. A gente tinha ideia do que ele estava fazendo, mas no final você começa a conviver de uma forma natural, você começa a achar que é tudo muito natural. – conta ela.
A sensação de perseguição era constante. Sempre havia alguém ali vigiando. Dona Roze lembra muito bem disso:
- O que meu sogro dizia pra mim é você pode pensar o que quiser, mas não abra a boca pra falar nada. A ordem era essa. Então você pode imaginar como é chegar a um determinado lugar e se vigiar, cuidando de suas atitudes, sua fala, porque com certeza tinha alguém infiltrado pra saber qual era seus pensamentos, suas ideias, eles não vigiavam só palavras, vigiavam o comportamento principalmente!
A cabofriense relembra que a falta de informação era torturante. Havia interrupções em peças de teatro, fim de festivais de música e mensagens subentendidas passadas por tirinhas do “O Pasquim”. 
- As noticias não chegavam a gente, tudo era censurado. Víamos que coisas estavam acontecendo, mas nós não sabíamos o que. Não sabíamos que estavam matando gente, sumindo com pessoas, a gente não sabia de nada disso, isso não chegava até nós.
Ela compara aos tempos atuais:
- É o que esta acontecendo agora também. Estão acontecendo mudanças grandes, mas quem está alerta para isso? As pessoas vivem. Elas trabalham, dormem, acordam, criam filhos, festas, a massa não percebeu na época e eu fazia parte dessa massa. Da onde eu teria que ter informação, era vedado, não podia. – conta.
O desconforto com as constantes vigias e a tensão no ar, fazia com que as pessoas desconfiassem de todos o tempo todo. Dona Roze lembra do professor que a assustava:
- Eu tinha um professor muito estranho, era um professor de português. Toda aula de redação ele queria que eu fosse lá na frente ler. E meu sogro falava que a redação é uma forma de colocar suas ideias e que eu deveria ter cuidado. Aí eu ficava cismada com aquele professor, desconfiada. Até que depois eu perguntei a ele, professor por que todas as aulas você pede pra eu ler minha redação? Aí ele falou que é porque eu era um laboratório pra ele, meu dialeto era um laboratório pra ele. Eu era cabofriense e na época de 70 Cabo Frio era uma cidade ainda muito atrasada, existia um dialeto ainda e eu falava esse dialeto. Bem, ai eu relaxei. – conta ela entre risos.
Situações assim se repetiram muitas outras vezes, bastava uma pergunta estranha para vir a desconfiança, aquela podia ser uma pessoa qualquer, mas podia ser um infiltrado.
- Essas eram as circunstancias que a gente vivia. A gente entrava no ônibus e sempre tinha alguém observando. A aparência física dessas pessoas marcava um pouco, eles tinham um aspecto singular, eram todos parecidos, pessoas muito bem vestidas, com camisa social de manga curta, aquele óculos Rayban, calça social, e era época do jeans na moda, e eles tinham um perfil próprio. Às vezes você sentava na praça e daqui a pouco eles vinham. Você não se sentia à vontade em lugar nenhum. Você não sabia o que era, não sabia o que estava acontecendo, olha só a insegurança. Nós vivemos momentos parecidos hoje ainda, determinados lugares não é tudo que você pode falar.
Ainda hoje, Dona Roze sente as consequências desse período de ditadura, ainda teme expressar opiniões e tem dificuldade em escrever suas pesquisas:
- Hoje, no meu trabalho, quando eu escrevo minhas pesquisas tenho dificuldade por conta dessa coisa que veio lá de trás, é o inconsciente. Vi que tenho medo de falar o que penso, de dar minha opinião. Às vezes tenho vontade de chamar atenção para determinada coisa e eu tenho dificuldade.
A ditadura foi geral, e seus reflexos foram em todos os cantos. Mas o principal foco foi na capital, de acordo com a pesquisadora. 
- Cabo Frio sempre foi uma cidade muito tranquila, mas houve pessoas cassadas aqui sim. Antes do golpe, havia muita greve aqui, porque tinham dois sindicatos, mas só nessa fase mesmo que foi mais violento. Na fase das cassações, foi mais direto mesmo, só pessoas especificadas, ligadas ao movimento sentiram os efeitos, Não interferiu na massa daqui. Não sabíamos de nada ao certo, só sabíamos que as pessoas foram exiladas quando voltaram, não tínhamos essa visão política. – explica.
Dona Roze afirma que tudo o que aconteceu no passado, naquele momento, gerou consequência no que vivemos hoje. E é essa a importância do estudo da história, para ela:
 - Você vê claramente que existem causas e consequências.  E isso precisa de um tempo determinado pra você ver o conjunto de fatos e o que eles geram. Assim, nós aprendemos a não cometer os mesmos erros.
Erros esses que ela tenta evitar ao máximo. Ela sabe que a consciência política é necessária e que um ato errado da população pode gerar consequências terríveis. A desinformação é um grande perigo para a sociedade.
- No momento que estava acontecendo a ditadura as pessoas não tinha essa consciência, não tínhamos informações suficientes. Quando teve as Diretas Já, eu me fiz a pergunta “vamos votar em quem?” e continuo me fazendo a mesma pergunta. – finaliza ela.
Por Luíza Gallagher e Bianca García :: UVA PASSA

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